No dia de ontem, 11/11, o Conselho Federal da OAB divulgou uma recomendação sobre o uso de Inteligência Artificial Generativa pelos advogados brasileiros.
Será que as regras são positivas? Será que poderiam ser melhores? Há pontos polêmicos?
Para fazer essa análise, traremos nesse artigo não apenas um olhar unilateral sobre o que foi feito pela OAB, mas faremos também uma comparação com um documento parecido, que foi feito no estado americano da Flórida, pela American Bar Association, em 19/01.
Será que a OAB brasileira se inspirou na ABA da Flórida? O quanto elas são semelhantes e no que diferem? Haveria algo que poderia ter sido importado da regra americana?
Vamos entender isso melhor?
Dimensão e extensão da norma
Uma primeira análise que podemos fazer é em relação à cobertura das normas.
Em ambos os casos, as normas são não-vinculativas, ou seja, são recomendações que não possuem caráter punitivo e não preveem sanções.
Uma parte interessante da recomendação americana é que ela fornece as fontes que a embasaram, tanto dos casos de problemas reais de uso da I.A. por advogados, quanto o embasamento técnico sobre o funcionamento da tecnologia que foi utilizado.
Já no caso da recomendação brasileira, a opção foi pelo uso dos “considerandos” que no texto tiveram a função de explicar as premissas nas quais se basearam, incluindo temas técnicos quanto legislações aplicáveis, porém não foram fornecidas as fontes e também não foram mencionados casos reais de uso indevido de I.A. por advogados.
Já sobre o temas tratados, é possível ver as diferenças abaixo:
Temas tratados pela recomendação brasileira:
Legislação aplicável
Confidencialidade
Prática jurídica e ética
Comunicação sobre o uso de IA Generativa
Temas tratados pela recomendação da Flórida:
Confidencialidade
Supervisão da IA Generativa
Honorários e Custos Legais
Publicidade de Advogados
Pela simples análise dos temas, já é possível identificar que as regulamentações até têm semelhanças, mas possuem diferenças interessantes.
Agora, vamos entrar em cada tópico da maneira específica e comparar como eles foram tratados.
Sobre a Legislação aplicável
Nesse tema, apesar de parecer algo que a recomendação brasileira trouxe e a americana não, na verdade a diferença está na estratégia de alocação do conteúdo.
Na legislação da Flórida, as referências às normas aplicáveis a cada tema está tratada no texto do tópico, ou seja, eles optaram por conectar a recomendação de uso da I.A. com as normas existentes conjuntamente.
A opção da OAB foi diferente e a recomendação determinou que o uso da I.A. generativa deve ser realizado em conformidade com a legislação vigente, em especial:
Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil;
Código de Ética e Disciplina da OAB;
Lei Geral de Proteção de Dados;
Código de Processo Civil; e
Legislação de Propriedade Intelectual.
Embora usando estratégias diferentes, acredito que ambas as instituições tenha acertado ao lembrar expressamente as normas aplicáveis, mesmo que isso seja óbvio. Em algumas situações, o óbvio precisa ser dito.
Sobre a confidencialidade
Agora entramos em um tema importante, tanto que foi tratado por ambas as instituições.
Na recomendação brasileira, foram incluídos quatro parágrafos contendo as seguintes práticas às quais os advogados devem se atentar ao utilizar ferramentas de I.A.:
Ter cuidado e zelar pela confidencialidade e sigilo das informações;
Evitar inserir dados pessoais dos clientes;
Verificar se o fornecedor da ferramenta de I.A. também protege dos dados, adota medidas de segurança e não utiliza os dados para treinamento da I.A.;
Verificar a política de privacidade da ferramenta de I.A. e como ela compartilha os dados recebidos;
Não usar chatbots que realizem atividades privativas da advocacia; e
Informar o usuário do chatbot de que se trata de uma máquina e não um humano.
A norma americana, também alerta de que o advogado deve proteger a confidencialidade das informações do cliente, mas também fornece uma explicação de que o conceito de confidencialidade que deve ser amplo e abranger todas as informações obtidas durante a representação de um cliente.
Outra previsão importante da orientação da Flórida é a determinação de que a regra é a obtenção do consentimento expresso do cliente para divulgar qualquer informação para a I.A. e a exceção é a divulgação na medida do razoavelmente necessário para atender ao interesse do cliente.
A ABA também se preocupou em determinar que é responsabilidade do advogado saber se a ferramenta de I.A. que ele pretende utilizar é “auto aprendiz” ou não, uma vez que em sendo, aumenta a possibilidade de que as informações de um cliente possam ser armazenadas e reveladas a consultas futuras de terceiros.
Algo diferente feito pela ABA foi a referência a outras recomendações referentes ao uso de outras tecnologias pelo advogado, tais como a computação em nuvem, descarte de armazenamento eletrônico, serviços de paralegal remoto e metadados.
Afinal, do que adianta o advogado ter todos os cuidados com a confidencialidade no uso da I.A., mas não adotar cuidados semelhantes na hora de encaminhar um e-mail ou de enviar uma mensagem de WhatsApp? O foco é a confidencialidade, não a ferramenta.
A norma americana também determina que o advogado não deve tentar acessar informações fornecidas anteriormente à IA generativa por outros advogados e que as preocupações com a confidencialidade podem ser mitigadas pelo uso de uma IA generativa interna em vez de uma IA generativa externa.
Em conclusão, no que se refere à confidencialidade, as recomendações seguiram um certo caminho bastante semelhante, porém a americana trouxe alguns pontos interessantes que a OAB poderia ter tratado como a necessidade de obter consentimento do cliente para usar seus dados em ferramentas de I.A, os cuidados com outras tecnologias conectadas, a diferença no uso de ferramentas de I.A. internas e a vedação da tentativa de acessar dados que outros advogados tenham fornecido para a I.A. anteriormente.
Prática Jurídica e Ética e a Supervisão da Inteligência Artificial
Nesse tema, cada recomendação utilizou um título. A OAB chamou de “Prática jurídica e ética” e a ABA utilizou “Supervisão da Inteligência Artificial”.
Em ambos os casos, o objetivo das instituições foi alertar os advogados sobre os riscos de “terceirizar” o trabalho jurídico para uma máquina, sendo que na recomendação do Brasil nós temos 5 parágrafos que determinam o seguinte:
O julgamento profissional não pode ser feito por meio da I.A. generativa sem supervisão humana;
Não deve delegar nenhuma atividade privativa da advocacia para a I.A.;
Deve ter atenção com doutrina e jurisprudência para fornecer em juízo informações verídicas;
Evitar a dependência excessiva de ferramentas de I.A.;
Deve compreender como a tecnologia funciona (limitações e riscos);
Deve compreender os termos de uso e outras políticas aplicáveis ao tratamento de dados feito pelas ferramentas;
Deve ter aprendizagem contínua e capacitação constante sobre os conteúdos gerados por I.A. e suas implicações para a prática jurídica.
Já a recomendação da ABA começa lembrando que os advogados já devem assegurar que a conduta de um assistente ou estagiário seja compatível com as obrigações profissionais do advogado, ele deve fazer o mesmo para a IA generativa.
E esses deveres se aplicam a não advogados “tanto dentro quanto fora do escritório de advocacia.”
Além disso, um advogado deve considerar cuidadosamente quais funções podem ser delegadas à IA generativa.
A recomendação determina que o advogado não pode delegar à I.A. generativa qualquer ato que possa constituir a prática do direito, como a negociação de reivindicações ou qualquer outra função que exija o julgamento e a participação pessoal do advogado.
Até a questão sobre a possibilidade sobre a realização da entrevista inicial com o cliente ser obrigatoriamente feita pelo advogado ou não foi tratada.
A recomendação americana conclui destacando que um advogado deve ter cautela ao utilizar um chatbot de IA generativa excessivamente acolhedor que possa fornecer conselhos jurídicos, deixar de se identificar imediatamente como chatbot ou deixar de incluir avisos claros e compreensíveis que limitem as obrigações do advogado.
Em conclusão, mais uma vez as recomendações seguiram um certo parecido, porém a americana trouxe alguns pontos interessantes que a OAB poderia tratar, tais como o dever de cuidado também fora do escritório, mencionar exemplos de atividades que não podem ser delegadas para a I.A. e, por fim, tratar do uso de chatbots de atendimento.
Comunicação sobre o uso de IA Generativa
Aqui temos um ponto polêmico.
Na recomendação americana, não há nada parecido, exceto o último parágrafo do tópico anterior onde a orientação é de que seja comunicado aos usuários de chatbots que se trata de uma ferramenta de I.A. e não de um advogado humano.
A OAB optou por seguir um caminho diferente e incluir uma recomendação também para o cliente do escritório, devendo os advogados:
Comunicar com transparência sobre o uso que pretende fazer da I.A. no caso do cliente;
Nessa comunicação, avaliar o contexto e os riscos associados (contrato ou aviso de uso de I.A.);
Evitar que a comunicação com o cliente seja apenas com conteúdo gerado por I.A. (o cliente tem o direito de interagir com um ser humano); e
Deve respeitar as atividades privativas da advocacia.
Na minha opinião, a polêmica aqui reside no fato de que a Inteligência Artificial é apenas uma ferramenta que os advogados podem utilizar na realização do seu trabalho, assim como outras como os livros, a internet, os buscadores (Google), os editores de texto (Word, entre tantas outras, que não precisam ter seu uso explicado aos clientes.
Honorários e Custos Legais
Esse tema não foi tratado na recomendação da OAB, então vamos analisar o que foi feito na Flórida para verificar se alguma coisa poderia ser aproveitada no Brasil.
No que se refere aos honorários advocatícios, a norma americana começa por lembrar de todas as regras já existentes que tratam da cobrança ética de um cliente em todos os seus âmbitos, tais como a transparência e a vedação à cobrança duplicada, por exemplo.
E onde a I.A. entra nesse contexto?
Para a ABA, embora programas de IA generativa possam tornar o trabalho de um advogado mais eficiente, esse aumento de eficiência não deve resultar em reivindicações falsamente infladas de tempo.
Ou seja, a recomendação da ABA é de que os benefícios do aumento de eficiência beneficiem tanto o advogado quanto o cliente, reduzindo os honorários.
Além disso, o advogado deve informar ao cliente, preferencialmente por escrito, a intenção de cobrar o custo real do uso da IA generativa.
Se o advogado não puder determinar o custo real associado ao cliente específico, ele não pode, eticamente, ratear as cobranças periódicas da IA generativa e, em vez disso, deve considerar essas cobranças como custos gerais.
Ele também deve tomar cuidado para não cobrar pelo tempo gasto no desenvolvimento de competência mínima no uso da IA generativa.
Na minha opinião, esse também é um tema polêmico e a OAB acertou ao não o tratar nesse momento. Sendo coerente com a minha conclusão do tópico anterior, entendo a I.A. como sendo apenas mais uma ferramenta de trabalho e, assim sendo, não precisa de uma regra específica assim.
Por acaso houve regra sobre honorários para os advogados que trocaram as máquinas de escrever pelos computadores ou que começaram a utilizar as buscas na internet junto com a leitura de livros? Essa eficiência obtida nunca foi motivo para redução de honorários.
Publicidade de Advogados
Aqui temos o contrário. A OAB não tratou desse tema e eu acredito que deveria ter tratado.
Temos sido impactados diariamente por anúncios de advogados nas redes sociais com a divulgação de “oráculos jurídicos” que seriam capazes de fazer verdadeiros “milagres” como uma contestação em apenas um clique ou um contrato em apenas 5 segundos, o que é totalmente inadequado e abusivo.
Vamos ver o que os americanos incluíram em sua recomendação para tentar compreender como a OAB pode seguir nas novas atualizações da recomendação brasileira.
Nesse tópico, a Ordem dos Advogados da Flórida faz referência às regras já existentes que incluem proibições contra conteúdo enganoso e anúncios indevidamente manipulativos ou intrusivos.
Em razão disso, a recomendação determina o advogado deve ter cuidado ao usar um chatbot de IA generativa para fins de publicidade e recepção de clientes, pois será o responsável final caso o chatbot forneça informações enganosas aos clientes potenciais ou se comunique de forma inapropriadamente intrusiva ou coercitiva.
Para evitar confusão ou engano, o advogado deve informar os clientes potenciais de que estão se comunicando com um programa de IA e não com um advogado ou funcionário do escritório de advocacia.
Além disso, embora muitos visitantes do site de um advogado busquem voluntariamente informações sobre os serviços do advogado, o advogado deve considerar a inclusão de perguntas de triagem que limitem as comunicações do chatbot se uma pessoa já estiver sendo representada por outro advogado.
Os advogados podem anunciar o uso de IA generativa, mas não podem afirmar que sua IA generativa é superior àquelas usadas por outros advogados ou escritórios de advocacia, a menos que as alegações do advogado sejam objetivamente verificáveis.
Conclusão
Em resumo, podemos dizer que as recomendações tanto do Conselho Federal da OAB, quanto da American Bar Association, estão em sintonia com o que temos falado em nossos treinamentos.
O advogado pode utilizar tecnologias de I.A. generativa, porém deve fazer isso de forma ética e garantindo a conformidade com suas obrigações profissionais.
Podemos até criticar alguns pontos, como a obrigatoriedade de avisar os clientes sobre o uso de uma ferramenta de trabalho, como é o caso da I.A., mas, no geral, as orientações são positivas.
O mais importante é conscientizar os advogados de que a IA generativa ainda está em seus estágios iniciais e que essas preocupações éticas devem partir, inclusive, deles.
Por fim, o grande acerto de ambas as recomendações é a orientação de que os advogados devem continuar a desenvolver sua competência no uso de novas tecnologias, como é o caso da I.A., e nos riscos e benefícios inerentes a essas ferramentas.
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Os resultados obtidos nessa pesquisa serão compartilhados em um relatório completo para os participantes, bem como serão apresentadas recomendações, dicas de ferramentas, técnicas de engenharia de prompts e caminhos para os advogados avançarem no uso da I.A. Generativa.
Contamos com a sua contribuição nesse estudo.
Obrigado!
Mauro Roberto Martins Junior
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